domingo, 8 de fevereiro de 2015

Depoimento



Dona Otilia está aprendendo a tocar violão. Saem agora as primeiras notas que o tempo já recebeu dos dedos dela. E é ao som das notas inseguramente dispersas de Otilia que eu arrumei a minha mala para Paris.

(O relato sobre a minha viagem refletirá o esforço de permanecer aquecida; com os dedos firmes e cortados, como os de alunos que iniciam as aulas de violão. Assim fundou-se, do empurro dos dedos ardentes numa e noutra corda; do calor das mãos; da concentração na beleza de tudo; do positivismo certeiro: o som).

Contraí-me em um avião por 15 horas, longe, muito longe das ruas Heitor Penteado, Av. Francisco Morato e Ermano Marchetti, onde estendo o cotidiano.

Ao empilhar as expectativas que o meu olhar recolhia da janela do trem (que me levou do aeroporto ao hotel), a respiração passava a fluir diferente. Como se pode supor pela época do ano, já sentia a atmosfera úmida e apaixonante de Paris.

Na rua Volontaires deixei o primeiro olhar surpreso e saciado de alcançar, pela primeira vez, uma rua que só conhecia através dos desenhos nos livros de arquitetura. Ali, num quarto pequeno e envolvente, deixei as bagagens e senti-me condenada à prisão domiciliar. Uma sacada florida que cabia apenas uma pessoa, uma banheira branca que cabia metade de mim. Tudo era feito para ser usado por pessoas pequenas e/ou solitárias. O inverno, porém, só para solitárias.

Noite ou outra chegava às 17horas e o sono chegava atrasado, muito depois. Naquele quarto escuro, despendi alguns pensamentos longos e alguns soluços de saudade e de lembrar a justiça infligida por tudo aquilo que impede tantas pessoas de não viverem Paris e a sua arte, e o seu detalhe e a sua imensidão.

Durante o dia, a admiração e a contemplação da beleza saltava a todos os sentimentos humanos em mim. Apesar de curtos, os dias eram presas fatais aos seres sensíveis.
Me enchi de sentimentos na famigerada Torre Eiffel, nos Arcos todos, nos Museus, nas igrejas góticas, nas paisagens vistas do Sena e pisando naquelas calçadas, sentindo o cheiro da batata de rua, jantando queijos e vinhos, sorrindo para a cantoria entre uma linha e outra do metrô no início do dia, etc. Me enchi. Me enchi, porque é um crime viver vazio em Paris.

Conheci senegaleses também. Um deles, trocou os meus 20 euros por uma porção de presentes. Refugiados, provavelmente - gritando coisas que eu não traduzia. Os refugiados aguardam para preencher aquelas vagas vazias há anos, na sociedade francesa, reservadas a pessoas com condições socioeconômicas melhores.

A minha angústia, sobreposta ao meu romantismo, revelava uma reação muito longe do clichê. No dia 25 de dezembro despejei boa parte do que abastecia esse desânimo, em lágrimas. As saudades não calam nem nos mais lindos lugares.

O desabafo é uma maneira de reciclar as emoções. Da mesma forma, o reproduzi no dia 1 de janeiro, em meio às gargalhadas e às vozes (muitas vozes!) confrontadas pelo pranto das crianças e mais gargalhadas. Eu via olhares maliciosos e selvagens varrerem a paz entre mim e o meu namorado. As massas que tomavam conta das ruas ao redor da grandiosa Torre (apagada) se configuravam nos monstros que já travestiram os meus sonhos.

Na França eu bebi, pensei, aprendi, sorri, renunciei e compadeci. Na Champs-Elysées, uma das ruas mais iluminadas que eu já vi, experimentei muitas fragrâncias de perfumes.

Quando já me despedia da cidade de luz, eu percebi que andava de braço dado com alguém que minimizava os meus cansaços e dividia comigo, silenciosamente, a minha solidão. Teria preferido identificar antes, mas perdia meu tempo militando para quebrar as nossas diferenças. Essas pessoas emergem entre nuvens e assim permanecem. Fui observadora, autocrítica,  consumidora de amenidades e grandiosidades culturais. Tive feições finas e fechadas e não sei se compartilhei os seus significados com o meu par.


Daí fez-se o som: Daí fez-se o depoimento: Não deixaria mais que as indagações postergassem dentro de mim.

Um comentário:

  1. Mor, adorei ler cada pedacinho! É como se eu tivesse que dar a mesma descrição, sentisse o mesmo cheiro, as mesmas impressões. Seus momentos de introversão reflexiva eram totalmente necessários e totalmente seus, mas nunca estava sozinha afinal. Adorei todos os momentos do seu lado, e ainda vou adorar muitos mais. Te amo. Parabéns pelo lindo texto.

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